E Nós? Para onde vamos Olhar?

Nelson “Henda” Vieira Lopes | psicólogo, terapeuta familiar e educador multicultural

Racismo e Saúde Mental
Photo by jurien huggins on Unsplash

Racismo ou Preconceito
O conceito de racismo é algo que tem evoluído, à medida que vamos percebendo cada vez mais sobre o que este fenómeno implica e os efeitos que tem tanto no indivíduo como na sociedade.

Se a princípio se pensava no racismo meramente como uma forma de preconceito, hoje a nossa leitura mostra que este se destaca do preconceito.
De grosso modo, o processo de preconceito seria como o nome indica, um pré conceito, ou seja um conceito ou juízo estabelecido antes da situação, criado por informação de outrem ou adquirido de experiências passadas do próprio. A partir daí passamos a reagir de forma automática a todas as situações semelhantes.

Este é um processo natural em todos os seres humanos. Possuímos um cérebro que categoriza situações e usa atalhos mentais (heurísticas), para criar respostas automáticas para situações semelhantes, evitando assim perder tempo a reanalisar a situação cada vez que a encontra.

Assim, é normal se tivermos uma experiência negativa com um cão que desenvolvamos um receio automático de cães no futuro próximo.

Mas se isto fosse a causa do racismo a solução seria simples, à medida que nos expomos a novas situações com o a situação, vamos alterando os nossos preconceitos com adição de nova informação ao nosso dispor. Assim, bastaria a convivência dos vários povos e etnicidades, e rapidamente a percepção de que determinado grupo de pessoas são “assim ou assado” desapareceria.

Então porque é que passados tantos anos de vivência em comum, este tema ainda seja discutido? Porque é que ainda hoje temos nos nossos media, nas nossas conversas de café, nas nossas casas, o tema do racismo?

É preciso então compreender que o racismo é mais do que mero preconceito. Racismo é a institucionalização, a internalização do processo social e político de preconceito, de modo a que as estruturas sociais se tornaram fundadas nesses mesmos valores. Valores como a primazia do homem branco sobre outros grupos. E não é exclusivamente o racismo, também o sexismo é intrinsecamente institucional.


Racismo como preconceito institucionalizado
Esta institucionalização da diferença estabelece um padrão cultural e social invisível, torna-se subtexto dos procedimentos, interações, seleção, imagética de grupo, etc. Dando gênese a uma série de comportamentos padrão nascidos do racismo, e por serem padrão são muitas vezes normalizados e justificados.

Este processo perpetuada por nós todos, reflete-se nas políticas das instituições sociais, nos seus valores e nas suas práticas, e daí a necessidade de ter medidas e protocolos abertamente pro-romani, pró-negro, pró-feminino, pró-portador de deficiência, etc. Não basta ter políticas para todos, é preciso ter também políticas para cada um dos grupos que enfrenta desafios diferentes dentro de si.

Sem isso estas práticas sociais e institucionais generalizadas e normalizadas traduzem-se em micro e macro agressões diárias, e cujos recipientes desta violência nem sempre percebem que estão a ser vítimas, mas que se refleto ao nível da saúde mental.


Racismo, agressões e Saúde Mental
O grupo de pessoas vítima de racismo institucional sofre diversas agressões, muitas delas difíceis de perceber pelo próprio grupo dominante que não tem noção do que sucede. Muitas dessas agressões são claras e facilmente identificáveis, como a morte de elementos de grupos desfavorecidos (negros, ciganos, estrangeiros, mulheres), as políticas de imigração e naturalização, etc.

No entanto existem ainda as micro-agressões, pequenos e subtis cortes, muitas vezes que os próprios perpetradores não se apercebem do grau de agressão ou objectificação do outro.

São frases como “É negro, mas é muito inteligente!”, “lápis cor-de-pele”, “Mas sou preto ou quê?!” ou “Não faças judiarias!” Frases que podem ser confundidas com elogios, simples nomes de coisas, ou expressões antigas que se diziam, sem nada de mal ou discriminação… mas todas elas vão subtilmente entranhando a ideia no nosso subconsciente de que não ser branco é errado, inferior, indigno.

O racismo está de tal maneira introduzido no subtexto da comunicação social e institucional, que produz uma série de comportamentos de micro-agressão inconscientes, desde a pessoa que agarra a mala no elevador quando um negro entra, ao dono da loja que se põe em alerta quando um membro de comunidade cigana entra na loja, ao polícia que para mais frequentemente pessoas de descendência africana, a dificuldade de alugar habitação, a falta de representatividade nos media, nos órgãos de decisão, nas estruturas do país, etc.

De todo o lado o marginalizado recebe informação que o valor da sua vida é inferior, de que não tem os mesmos direitos nem merece o mesmo respeito, uma mensagem que vem dos seus pais, avós, bisavós. E isto vai criando e cristalizando danos psicológicos com consequências graves.

Assim a vítima de racismo acaba por se sentir sozinha, muitas vezes sentindo que não tem suporte ou representação legal ou social, o que promove uma sensação de insegurança e desamparo generalizado.

Cada vez mais bombardeado por imagens pejorativas suas, é comum surgirem os sentimentos de auto desvalorização, ou de desvalorização da sua própria comunidade e cultura, isolamento, diminuição da auto estima e da auto eficácia, letargia, crise identitária, depressão, etc.

Outros ao não se sentirem identificados, acabam por ser revoltar, interiorizando sentimentos de serem injustiçados, o que vai quebrar o contrato social.

Deixam de sentir que podem confiar no sistema ou na sociedade para os proteger e desenvolvem comportamentos mais disruptivos, na linha da revolta com figuras de autoridade (ex: pais, família, polícia, professores), economia paralela, descrédito pelos valores veiculados pela sua comunidade (ex: unidade familiar, educação, obediência civil), disrupção do núcleo familiar, gravidez adolescente, abandono escolar, isolamento social das comunidades, etc.


O agressor
Mas… e quem é o agressor? Quem é o responsável por promover a degradação sistemática de um grupo de pessoas usando como argumento a superioridade da raça, ou do género.
Somos todos nós.

O perfil do racista, é aquela pessoa que não está disposta a analisar os seus privilégios pessoais, e a perceber que estes vieram da opressão de uma faixa da população. O não fazer nada para perceber às origens do seu privilégio, é silenciosamente apoiar o sistema que sustenta esses privilégios.

Esses pequenos privilégios, são o “suborno” da institucionalização do racismo. Dá ao ser humano comum privilégios sobre outro ser humano e a única coisa que lhe pede é que “olhe para o outro lado!”, por isso Portugal não se sente racista. Porque não há uma imensidão de actos abertamente racistas como ouvimos que existem “lá fora”? ou porque há uma invisibilidade das comunidades desfavorecidas? Ou porque temos a ideia de que essas comunidades estão cheias de bandidos, delinquentes, pessoas de baixa escolaridade, e modos rudes? Quem nos vendeu essa ideia? Quem promoveu essas comunidades?... Quem olha para o outro lado?

Assim, não são os elementos abertamente racistas que são mais preocupantes, porque esses são facilmente identificáveis, e sendo facilmente identificáveis são fáceis de trazer para o escrutínio público, ou criar políticas reparadoras e impeditivas.

O problema surge quando há elementos subtilmente racistas, de tal forma incutidos de tal forma na nossa mente social, que não é claro nem automático a sua associação ao racismo.

Assim toda a população aprende a não dar muito significado a determinados actos ou expressões, pois estes passam despercebidos como sendo não relacionados com o racismo.

Todos nós, educados pelo sistema racista somos agentes do racismo. Não são apenas os brancos que são agentes de racismo, ele está tão intrinsecamente entretecido na cultura, nas instituições, na forma de olhar que se torna difícil até para os negros de se escaparem a ser agentes e (des)educadores deste processo.

Durante muitos anos se perpetuaram ideias na comunidade negra como “os negros mais escuros são menos inteligentes”, “ideal de beleza é branco e ocidental”, “casar com branco europeu, ou africano mais claro dá estatuto”, “cabelo crespo é repudiado”, “os africanos são desorganizados e incompetentes”. A vítima de racismo começa a interiorizar este discurso desde muito novo, um discurso firmado ao longo de gerações. Muitos destes preconceitos já são desafiados dentro da comunidade negra, mas é preciso continuar.

Diz-se que o pior cego é aquele que não quer ver. E esse é realmente o problema de uma sociedade racista, a passividade em aceitar que estes valores continuem a ser veiculados e justificados, com base nas disparidades que o próprio sistema provocou.

E nós, para onde vamos olhar?



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